Da Redação   |   16/10/2025 08:19

Portaria redefine tempo de diária e promete mais transparência na hotelaria; leia o artigo

norma vai além da mera gestão operacional e alcança dimensões de transparência e equilíbrio contratual

Divulgação
Rui Aurélio de Lacerda Badaró e Marco Antonio Araujo Jr
Rui Aurélio de Lacerda Badaró e Marco Antonio Araujo Jr

A Portaria nº 28/2025 do Ministério do Turismo reacendeu um debate antigo e pouco explorado no campo jurídico: a delimitação do tempo na hospedagem. Ao tentar padronizar check-in e check-out, a norma vai além da mera gestão operacional e alcança dimensões de transparência, equilíbrio contratual e proteção ao consumidor.

É o que comentam Rui Aurélio de Lacerda Badaró, vice-presidente da Comissão de Direito do Turismo, Mídias e Entretenimento do Conselho Federal da OAB, e Marco Antonio Araujo Jr, presidente da Comissão de Direito do Turismo, Mídias e Entretenimento do Conselho Federal da OAB, em artigo.

Check-in às cegas: o que a Portaria 28/2025 revela sobre o Direito do Turismo

"A recente edição da Portaria nº 28/2025 do Ministério do Turismo trouxe à tona um tema aparentemente banal, mas que guarda uma densidade jurídica surpreendente: o tempo da hospedagem. Check-in e check-out sempre foram tratados como práticas quase folclóricas, ajustadas no balcão, em letras miúdas dos contratos de adesão ou, pior, relegadas à convenção tácita de cada estabelecimento. Agora, com a nova normativa, surge a tentativa de se estabelecer uma padronização mínima, que traga transparência para consumidores e segurança jurídica para os prestadores de serviço. Mas, como todo texto normativo, a questão não está apenas no que ele diz, mas também no que ele silencia.

O núcleo da Portaria reside em afirmar, no artigo 1º, §1º, que a diária corresponde ao período de vinte e quatro horas, mas que, conforme o §3º do mesmo artigo, até três dessas horas podem ser destinadas à arrumação, higienização e limpeza da unidade habitacional, garantindo ao hóspede pelo menos 21 horas de uso efetivo.

Em outras palavras: o tempo da hospitalidade não é idêntico ao tempo do relógio. A diária não se confunde com a posse física de um quarto, mas com uma prestação complexa que inclui serviços acessórios. Aqui, o Direito Civil se encontra com a hermenêutica do tempo: o que se contrata não é um espaço vazio, mas um feixe de obrigações, uma temporalidade pactuada. É como se a lei dissesse: o quarto é seu, mas o tempo é nosso.

Essa aparente contradição - uma diária de 24 horas que comporta apenas 21 horas de fruição - revela algo mais profundo sobre a natureza jurídica do contrato de hospedagem. Não estamos diante de uma locação simples, tampouco de um comodato temporário. Trata-se de uma prestação de serviços complexa, na qual o tempo de uso não se mede apenas pela presença física do hóspede, mas pela disponibilização de uma estrutura que precisa ser constantemente renovada.

A governança hoteleira, frequentemente invisibilizada na experiência do consumidor, é parte constitutiva do próprio serviço. O quarto limpo não é um luxo, mas condição de possibilidade da hospitalidade.

E aqui reside o primeiro nó hermenêutico da Portaria: ao estabelecer que “até três horas” podem ser utilizadas para preparação, a norma cria uma janela de discricionariedade que pode tanto proteger quanto vulnerabilizar o consumidor. Protege porque impede abusos como check-ins às 18h e check-outs às 10h, prática comum que reduzia a diária a meras 16 horas. Vulnerabiliza porque não especifica critérios objetivos para essa subtração temporal.

Qual o parâmetro para se definir se são necessárias uma, duas ou três horas? A metragem do apartamento? A categoria do estabelecimento? A quantidade de hóspedes anteriores? A complexidade dos serviços prestados? A norma silencia, e o silêncio normativo, como sabemos, é terreno fértil para o arbítrio.

Poderia o Ministério do Turismo ter sido mais preciso? Certamente. Deveria ter estabelecido uma tabela de referência, correlacionando tipologia de unidade habitacional com tempo razoável de higienização? Provavelmente. Mas preferiu a fórmula genérica, delegando ao mercado — e, eventualmente, ao Judiciário — a tarefa de preencher essa lacuna.

A virtude da norma está em traduzir, de modo mais claro, aquilo que já estava na Lei Geral do Turismo (Lei nº 11.771/2008) e, indiretamente, no Código de Defesa do Consumidor. O artigo 1º, §5º, ao estabelecer que os meios de hospedagem devem informar ao hóspede, no mínimo, os horários adotados de entrada e saída e o tempo estimado para limpeza e organização da unidade habitacional, concretiza na seara do turismo aquilo que os artigos 6º e 31 do CDC já previam: informação adequada, ostensiva e leal.

O consumidor, antes refém da assimetria informacional, agora tem um patamar mínimo de previsibilidade. E os meios de hospedagem, por sua vez, conquistam um parâmetro uniforme que reduz a insegurança e nivela a concorrência. Mais ainda: o §6º do artigo 1º estende esse dever de informar também ao intermediário que tenha atuado na comercialização dos serviços de hospedagem, o que é um avanço significativo, embora tímido.

Mas é preciso fazer uma pergunta incômoda: por que demorou tanto? Desde sempre, a questão da duração da diária foi objeto de regulamentação. Em determinados momentos, fixou-se o padrão de 24 horas; em outros, esse parâmetro foi simplesmente excluído. A Deliberação Normativa nº 364/1996, em seu artigo 10, já previa a diária de 24 horas, repetida pela DN nº 387/1998. Mas a DN nº 429/2002, ao aprovar o Regulamento Geral dos Meios de Hospedagem, retirou essa referência, recolocando a questão em aberto. Esse vaivém regulatório não é mero acaso: parece refletir, em grande medida, a força dos lobbies do setor, ora pressionando pela fixação, ora pela flexibilização.

Tudo isso, entretanto, tornou-se letra morta a partir de 2003, quando a criação do Ministério do Turismo (Lei nº 10.683/2003) retirou da Embratur a competência normativa, reservando-lhe apenas funções de promoção. O quadro foi definitivamente consolidado com a promulgação da Lei nº 11.771/2008 (Lei Geral do Turismo) e sua posterior regulamentação, que organizaram de forma sistêmica a disciplina do setor. A LGT, contudo, tratou do tema apenas de modo genérico em seu artigo 23, deixando espaço aberto para disputas interpretativas. Agora, dezessete anos depois, a Portaria nº 28/2025 retoma a questão, em mais um esforço de dar densidade jurídica a um problema que nunca se resolveu de maneira definitiva.

Contudo, mais flagrante que o conteúdo é a exclusão: as plataformas digitais de aluguel por temporada — Airbnb, Booking e congêneres — permanecem fora da incidência da Portaria. O resultado é a perpetuação de uma assimetria regulatória: enquanto hotéis, pousadas e hostels se submetem a regras de higiene, transparência e fiscalização, os imóveis alugados por aplicativos continuam na zona cinzenta da informalidade, escapando à regulação estatal.

Essa omissão não é acidental: reflete uma disputa de narrativas sobre o que é, afinal, um “meio de hospedagem”. As plataformas vendem a ideia de neutralidade, como se fossem meros “quadros de avisos digitais”. Mas, ao definir preços, processar pagamentos e controlar políticas de cancelamento, elas estruturam toda a relação contratual. Não são neutras, ainda que queiram parecer.

A jurisprudência europeia e o Digital Services Act caminham nessa direção, impondo responsabilidades. No Brasil, ainda se aceita a ficção jurídica conveniente de que a plataforma não presta o serviço. O problema é que, ao manter essa ficção, perpetua-se a desigualdade e se fragiliza a proteção do consumidor.

O ponto crucial, portanto, é compreender que estamos diante de mais do que um ajuste burocrático: trata-se da juridicização da hospitalidade. O contrato de hospedagem não pode ser reduzido a um jogo de horários arbitrários. Ele é, antes de tudo, um pacto de confiança, em que o hóspede deposita no prestador a expectativa de dignidade, previsibilidade e segurança.

A Portaria nº 28/2025, ao normatizar o óbvio, revela que o óbvio precisa ser dito, sob pena de se transformar em fonte inesgotável de litígios. Mas, como lembra a hermenêutica gadameriana, não basta aplicar a letra da norma. É preciso interpretar a hospitalidade como princípio jurídico.

Ela não se resume a “dar teto” por 24 horas; envolve dignidade da experiência, direito fundamental ao lazer (art. 6º da CF), higidez sanitária (extensão do direito à saúde) e a ideia de turismo como política pública de desenvolvimento (art. 180 da CF).

Nesse contexto, surge a questão que temos discutido em obras publicadas ao longo dos últimos 25 anos: pode o Direito do Turismo consolidar-se como ramo autônomo? Autonomia não se decreta, conquista-se. E talvez ainda seja cedo. Mas normas como a Portaria 28/2025 evidenciam que o Direito Civil e o CDC, isoladamente, já não bastam para dar conta da complexidade do fenômeno turístico.

Se o turismo pode ser improviso ou pode ser política de Estado, a Portaria nº 28/2025 parece dizer: “acabou a farra, vamos colocar o relógio para despertar no horário certo”. É um gesto de racionalização que aponta para a maturidade regulatória, ainda que tímida.

O setor não poderia continuar vivendo de “jeitinhos” normativos, tampouco de contratos escritos à mão no balcão da recepção. Mas a ironia é que a norma corre o risco de dormir no mesmo quarto das centenas de portarias já esquecidas, com check-out antecipado antes mesmo de entrar em vigor".

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