Especialista explica impactos jurídicos do shutdown dos EUA no Turismo; veja artigo
Bruno Cação, do FAS Advogados, analisa efeitos do shutdown norte-americano nos contratos de viagem

O recente shutdown do governo dos Estados Unidos, que levou à paralisação parcial de agências federais e afetou diretamente o setor de viagens, tem provocado debates também no Brasil sobre seus reflexos jurídicos.
Cancelamentos, atrasos e o fechamento de atrações turísticas administradas pelo governo norte-americano levantam questões sobre a responsabilidade das agências e operadoras diante de eventos dessa natureza.
Em artigo, o head da área de Prática Legal de Hospedagem e Turismo do FAS Advogados in cooperation with CMS, Bruno Cação, analisa o tema sob a perspectiva do Direito Contratual brasileiro. O especialista explica por que o shutdown não se enquadra automaticamente como caso de força maior e defende a aplicação da Teoria da Imprevisão como instrumento para reequilibrar contratos afetados.
Confira a seguir.
"O shutdown dos EUA e a crise contratual no setor de viagens sob a ótica da imprevisão
A paralisação parcial do governo norte-americano, o maior shutdown da história recente, repercute muito além dos corredores políticos de Washington. A suspensão de verbas federais afetou diretamente a malha aérea, o funcionamento de aeroportos e o controle de tráfego, mas também implicou no fechamento ou funcionamento restrito de atrações turísticas geridas pelo governo dos EUA.
O impacto imediato sobre o setor de viagens é evidente: cancelamentos em massa, atrasos prolongados e frustração de roteiros cuidadosamente planejados. No entanto, o tratamento jurídico desse fenômeno sob o prisma do Direito Contratual brasileiro exige reflexão mais cuidadosa do que uma simples invocação da força maior.
O art. 393 do Código Civil isenta o devedor quando o inadimplemento resulta de fato inevitável e imprevisível. Todavia, a doutrina nacional tem sido restritiva ao enquadrar eventos de origem política estrangeira, como o shutdown, nessa categoria. O fenômeno decorre de um impasse orçamentário intrínseco ao sistema institucional dos Estados Unidos, recorrente em décadas anteriores. Sua previsibilidade relativa compromete o requisito da imprevisibilidade absoluta exigido para a configuração da força maior.
Além disso, a impossibilidade de cumprimento raramente é total: em pacotes turísticos, apenas determinados serviços, como a visita a um parque nacional, a entrada em museus federais ou mesmo determinados trechos aéreos afetados pela redução de pessoal da Federal Aviation Administration (“FAA”) e da Transportation Security Administration (“TSA”) são inviabilizados, enquanto outros subsistem. Assim, ainda que o shutdown provoque atrasos, cancelamentos e reacomodações de voos, não se verifica, em regra, a impossibilidade absoluta de execução do contrato, mas sim a necessidade de readequação das prestações diante da perturbação parcial do serviço contratado.
Nesse contexto, a mera alegação de força maior tende a ser insuficiente para afastar a responsabilidade civil ou evitar a revisão contratual. O shutdown não impede a execução integral das obrigações, mas altera substancialmente suas condições econômicas e a equivalência entre as prestações.
O exame mais adequado recai sobre os arts. 478 a 480 do Código Civil, que disciplinam a Teoria da Imprevisão e a Onerosidade Excessiva. Embora impasses políticos façam parte do horizonte de riscos globais, a gravidade e a duração do shutdown de 2025, que levou a redução da capacidade da FAA e da TSA, à suspensão de parques e à desorganização logística caracterizam um evento extraordinário.
O contrato de intermediação de viagem, nesse cenário, não se torna impossível, mas sua execução se converte em obrigação desproporcionalmente onerosa. A agência é compelida a custear realocações, compensações e remarcações; o consumidor, por sua vez, vê frustrado o objeto principal do contrato. O desequilíbrio torna-se evidente e autoriza a revisão ou resolução contratual, restabelecendo a equidade econômica entre as partes.
Trata-se, portanto, de hipótese típica de aplicação da imprevisão: um fato superveniente e excepcional que rompe a base objetiva do negócio jurídico, sem importar impossibilidade absoluta de cumprimento.
Em perspectiva teórica, o shutdown pode ser equiparado a um “fato do príncipe estrangeiro”, expressão cunhada para designar atos de autoridade estatal que afetam contratos privados. Ainda que o evento decorra de uma dinâmica interna de poder, seus efeitos irradiam globalmente, atingindo operadores brasileiros que não têm qualquer ingerência sobre a causa geradora. A previsibilidade política do impasse não se confunde com a previsibilidade jurídica de suas consequências econômicas e operacionais.
Assim, sob a ótica da boa-fé objetiva, justifica-se a incidência da Teoria da Imprevisão como instrumento de recomposição das bases contratuais.
Independentemente da qualificação jurídica do evento, a conduta das agências e operadoras de turismo será escrutinada à luz do dever de diligência previsto no Código de Defesa do Consumidor. O art. 6º impõe o dever de informação clara e contínua, o que inclui o monitoramento de comunicados da FAA, da TSA e de órgãos oficiais norte-americanos. A omissão informacional compromete a alegação de imprevisão.
Além disso, o art. 20 do CDC exige que o fornecedor promova a restituição proporcional ou a readequação dos serviços não prestados. A boa gestão da crise por meio de comunicação tempestiva, propostas alternativas e documentação das medidas mitigatórias é decisiva para afastar a litigiosidade. O Judiciário tende a diferenciar o agente que atuou preventivamente daquele que repassou integralmente o risco ao consumidor.
O shutdown norte-americano de 2025 evidencia como fenômenos políticos externos podem repercutir de forma direta nas relações privadas regidas pelo direito brasileiro. A interpretação jurídica mais consistente não é enquadrá-lo como força maior automática, mas reconhecê-lo como fato extraordinário que enseja a aplicação da Teoria da Imprevisão e da Onerosidade Excessiva.
A partir dessa moldura, admite-se a renegociação contratual e o reequilíbrio das prestações, sem desconsiderar o dever de mitigação e de informação imposto pelo CDC. O Direito Contratual contemporâneo, ao lidar com riscos geopolíticos globalizados, deve abandonar a rigidez causalista da força maior e privilegiar soluções que preservem a funcionalidade econômica do contrato e a confiança nas relações de consumo."